sexta-feira, 21 de julho de 2006

BREVE CENA CARIOCA

O leitor já ouviu falar, ou conhece de perto, o espírito carioca. Difícil de definir, fácil de sentir.Tudo aconteceu num dia normal, como muitos outros. Num final de ano, mês de dezembro, sempre inspirador de comemorações e homenagens. Quando o homenageado encontra-se saudável, a época proporciona oportunidade para fartos coquetéis regados a bebidas variadas e muita fritura. Em total desacordo com a canícula dezembrina que assola o carioca. O homenageado do dia era o que se pode chamar, sem erro, gente fina. Empreendedor, grande jornalista sintonizado com os grandes temas do seu tempo, mobilizou legiões de jovens em busca de novas oportunidades de trabalho no seu jornal. Homenagem mais que merecida, portanto. Tendo visto nascer o jornal há vinte anos, não poderia faltar. Ademais, era seu amigo e admirador. Fui.
Discursos longos e animados num plenário muito especial, pois se tratava do Palácio Tiradentes. O histórico local onde esteve preso Joaquim José da Silva Xavier e muitos anos depois, foi câmara do Distrito Federal e mais recentemente, após a fusão do Estado do Rio com o da Guanabara, tornou-se Assembléia Legislativa do estado.Viu funcionar duas constituintes: a de 1933 e a de 1946. E também- dizem outros – o DIP Departamento de Imprensa e Propaganda da época da ditadura Vargas. Nesse vetusto e histórico prédio, a efeméride transcorria conforme previsto. Inclusive com o crescimento do número de convidados momentos antes do início do coquetel. Convalescendo de grave cirurgia e ainda submetido a rigorosa dieta, debatia-me heroicamente para manter equilibrados o bom e o mau colesterol, os triglicerídeos, glicose e outros menos votados como a creatinina e uréia.O imponente garçom que circulava entre os convivas viu-me recusar sistematicamente cervejas, frituras, salgados e vinhos.
Ao escurecer, concluí ser chegado o momento de retornar ao meu lar.Evitar excessos era a palavra de ordem médica. “Vamos de taxi” disse à minha esposa, que abstêmia e solidária observou silenciosa o meu consumo furtivo de duas pequenas taças de vinho tinto durante todo o evento.“Vamos” respondeu solícita e buscando a porta de saída do Palácio Tiradentes, ainda repleto de festivos e alegres convidados da comunidade educacional, e de alguns indefectíveis bicões.
Mas, algo muito estranho pairava no ar. A sensação de tontura não parecia conseqüência das duas taças de vinho. Ao caminhar na rua, após descer as escadarias do palácio, a surpresa: o chão sumiu!Desmaiei, perdi os sentidos.
Passados, creio, alguns segundos começo lentamente a recobrar a consciência.Deitado na calçada diante do palácio, quase em frente à rua da Assembléia ( antiga Rua do Presídio no tempo de Tiradentes) indago filosoficamente: “morri? é assim que se morre?”
O ruído dos automóveis, o bater de portas, o zunzum de pessoas próximas, tudo contribuía para me recordar sensação recentemente experimentada na sala de cirurgia. Então era isso. A operação retornava à minha memória cheia de ruídos, cheiros, zumbidos... “Mas isso não é a maca”, pensava enquanto estendia o braço e apalpava objetos estranhos ao meu redor. “E essas pedrinhas atrás da minha cabeça, na minha nuca.Que cama dura!” Lentamente abri os olhos receoso do que poderia encontrar, e ao mesmo tempo inquieto para saber se me encontrava na ante-sala do céu ou do inferno (não sentia calor, bom sinal!).
O leitor certamente já foi examinado de perto por alguém portando óculos com lentes que mais parecem fundo de garrafa. Contudo, jamais experimementou ser examinado simultaneamente por uma dezena de atentos observadores.Vista de baixo para cima, ou melhor do chão para cima, a dezena de rostos surpreende, amedronta. Mais ainda se, por cima dessas cabeças, paira um vulto sombrio indefinido e escuro: a grande estátua do Tiradentes impávida que me observava também em silêncio total.
Essa foi a imagem que vislumbrei ao recobrar os sentidos. Abri os olhos, olhei ao redor e para cima. Muitas pessoas. Outras se aproximando. Nenhuma fisionomia conhecida. (Está lá um corpo estendido no chão, pensei).
“Ele se move”, diz o moço dos óculos fundo de garrafa.”Não morreu,” comenta seu vizinho da direita. Tudo aquilo me parecia estranho. Amedrontado e muito, mas muito surpreso, levantei-me. Sentado quase junto ao meio-fio da calçada faço um enorme esforço para me colocar de pé, sentir-me realmente vivo e encarar meus observadores.
Caminho na direção de uma rampa de acesso ao palácio, sinuosa e cercada por uma mureta. A pequena multidão me segue na expectativa dos próximos desdobramentos dessa estranha situação. Cansado, sento na borda da rampa, na mureta que a contorna. Vejo ao longe minha esposa no alto da escadaria de acesso aos salões do palácio. Está acompanhada de alguém que me pareceu conhecer. Pela primeira vez as coisas começaram a fazer sentido: era um médico! Sim, claro, conversamos animadamente
até pouco antes da nossa saída do coquetel. Caminharam na minha direção. O médico, sentado ao meu lado, tomou-me o pulso e iniciou angustiante interrogatório: “tem problemas na carótida? Pressão arterial elevada?” e outras perguntas que obtinham invariavelmete um sim como resposta. Repentinamente o interrogatório médico é interrompido por uma senhora aparentando setenta e poucos anos. Saída da multidão, aproxima–se e me manda segurar uma moeda contra o pulso direito, pressionando-a com os dedos polegar e indicador ao mesmo tempo. Parecia um gancho a prender meu pulso e a moeda. Olha-me- e ao médico- firmemente nos olhos, e afirma plena de mistério: “segure firme, é metaalll. Imagino que uma pessoa em recuperação de um desmaio faça tudo o que lhe for solicitado. Deseja participar, e dizer veja como estou bem. Ao menos essa foi minha reação. Segui obediente as instruções da velhinha. O médico calado estava e calado ficou.
As manifestações de curiosa e genuína solidariedade popular começavam a brotar de todos os lados, passados os efeitos do susto e surpresas iniciais.É hipoglicemia. É fome mesmo. É a cachaça...Os múltiplos diagnósticos se sucediam em impressionante velocidade. Os respectivos remédios também. Foi quando surgiu uma jovem do fundo da multidão e ofereceu uma lata de Coca-Cola já aberta e parcialmente consumida. “Glicose não devo consumir. Refrigerente é item proibido na minha dieta rigorosa. Não, isso não”. Disse. Mas, agradecido, estendi a mão para recolher o presente perigoso. Estiquei o braço esquerdo, mantendo sustentado pela mão direita o metal da velhinha. Assim fiquei por alguns minutos com ambas as mãos ocupadas.Em franca recuperação, conforme se pode verificar. Sossego interrompido por nova oferta. Desta vez, um senhor de chapéu me aparece com um pacote contendo uma barra de cereais parcialmente consumida. Ainda solícito e participante, interrogo o médico, primeiro com um olhar e depois verbalmente após enigmático silêncio. “Que faço com essa moeda no meu pulso? Para que serve? Por quê?” A desconcertante resposta quase me deixou tão duro quanto a estátua do Tiradentes que não me perdia de vista, mesmo com toda aquela multidão ao redor. “Não tem a menor utilidade médica. Se bem não faz, mal também não. A velhinha pediu, você fez e pareceram ambos contentes e realizados, deixei... Além disso, aquele não era o momento adequado para grandes polêmicas médicas nem filosóficas”.
Entreguei contrariado a moeda ao médico. Antes verifiquei que a velhinha não se encontrava mais nas proximidades.Peguei a barra de cereais em uma das mãos, e o refrigerante na outra. Tentava organizar meus pensamentos, quando um grito ecoou. “Pega ladrão!” Era o garçom, que deixara ele também o coquetel para conferir os acontecimentos externos. Circulara a informação dando conta de que um dos convidados fora baleado numa tentativa de assalto na saída do palácio. Minha esposa que lá acorrera em busca de socorro para mim era apontada como a acompanhante da vítima. Profissional ao extremo, o garçom assim que viu o homenageado em pé junto ao médico, recompôs-se e passou a servir os convivas ali mesmo na rua. Braço dobrado na altura do pescoço, mão apoiando a bandeja e copos cheios na tradicional pose dos garçons em todo o mundo. Seguia ele tranqüilo, quando subitamente percebeu um transeunte atravessar a rua portado um dos seus copos cheio de cerveja. Ia na direção do terminal Menezes Cortes. Esse não voltaria com certeza. E gritou pega ladrão.Talvez já conhecesse a figura ou mesmo com ela convivesse em eventos boca livre (um dos bicões?).Veio na minha direção, como se a dizer “fui roubado por sua causa, você é o responsável”. Entendi e respondi: “mal me agüento de pé, não quer que eu saia correndo atrás do ladrão do seu copo, não é?”
A tradicional turma do deixa-disso entra em campo e tenta minimizar o fato com argumentos como: é apenas um copo, não vale uma briga. O homenageado coloca panos quentes, mas o garçom irredutível insiste (será que busca uma indenização? Uma perdas e danos meio na marra? Um reforço na gorgeta?)
O bafafá só terminou quando um cidadão, lá no fundo, vestido com uma camisa do Flamengo e uma tatuagem de mulata inspiradora das charges do Lan encerrou definitivo:
PERDEU PLAYBOY!


Autor: Arthur Pereira Nunes



Hospital São Lucas
Julho/2006